A graduação dos mundos

Article @ Chá de Caxinde, published 1 March 2014
 


Em 1997, quando visitou pela primeira vez Angola, o que muito chocou a minha mãe foi o constante assédio por parte de crianças e adultos pedindo “uma ajuda”. Sentiu-se incomodada com a discrepância entre os vários mundos. Entre o dela, o da burguesia Lisboeta, e o de Luanda dos anos noventa; mas também entre os vários mundos Angolanos, dos que se podem dar ao luxo de não mendigar e o de todos os outros.

Compreenda-se que a minha mãe não estava habituada a sair do que a elite neoliberal ocidental denomina por Mundo Desenvolvido. Paris e Berlim, onde a pobreza é colmatada em parte pelo estado social universal e, além disso, desinfectada e escondida para que não se estrague a experiência do turista, eram-lhe familiares. A Luanda, não dos postais ou dos filmes publicitários coloniais, mas do mercado de Benfica e das ruas empoeiradas da Cidade do Asfalto, a Luanda dos meninos de rua de pernitas bambas e dos polícias que pedem um cigarro e uns dólares, era-lhe hostil. No Primeiro Mundo não havia banana-pão, mas também não havia o relembrar incessante de que as nossas vidas, em comparação, são mesquinhas na sua abundancia.

Passaram-se mais de quinze anos desde que a minha mãe foi a Angola. Na realidade, pós-crash de 2008, Luanda não é só uma cidade da África sub-sariana, é um centro financeiro onde o capital internacional se encontra activo. A economia angolana ascende a um ritmo tão acelerante quanto as alterações paisagísticas da cidade de Luanda. A Marginal têm um quê de Calçadão. O Kinaxixi não existe mais. Há mais membros da classe média e alguns menos “ajudantes” no Aeroporto 4 de Fevereiro. E no entanto, duvido que a muitos portugueses, habitantes desse dito Mundo Desenvolvido, a Luanda de hoje não seja tão alienante como foi para a minha mãe em 1997.

Não que a realidade angolana seja, se bem que, segundo a UNICEF, mais de 50% da população viva abaixo do índice de pobreza (afinal de contas, a Luanda do Chill Out é também ainda a Luanda dos musseques), radicalmente diferente de muitos países do Mundo Desenvolvido. A grande hipocrisia internacional, principalmente portuguesa, está exactamente na exaltação dos desenvolvimentos, quase unicamente cosméticos, que o governo em Luanda implementou em prol dos angolanos, sem olhar para a deterioração dos direitos dos seus próprios habitantes. Em Portugal passa-se fome nas escolas e vive-se ao relento nas zonas mais caras de Lisboa. Em Portugal desmantela-se o estado social e silenciam-se as críticas às políticas de austeridade implantadas pela Troika com o conluio dos governos, primeiro de Sócrates e depois de Passos Coelho.

Assim sendo, não será pertinente perguntar onde acaba esse Mundo Desenvolvido e onde começa o Sub-desenvolvido? Quem tem legitimidade para graduar Angola e quem tem o poder de recategorizar Portugal? Quem estabelece os parâmetros sob os quais se qualificam a desenvoltura de um país, que claramente ignoram a fome, a miséria, e, acima de tudo, a enorme desigualdade entre aqueles que se banqueteiam e os que não têm nada para comer? Indignam-se muitos das disparidades socioeconómicas em Angola, mas em Portugal, tal como em Espanha, na França, até na Inglaterra e nos Estados Unidos, depende-se de bancos alimentares, de dois ou três empregos e até da esmola alheia, sem que isso choque muita gente.

Não sendo socióloga, não posso deixar de me perguntar se esta sensibilidade social algo esquizofrénica não será em muito permutada por um sentimento pós-colonial. Como se, para os que têm o privilégio de rotular os mundos, se considere que na Europa ser-se pobre é excepcional, mas nos países africanos faz parte e é defeito de fabrico. Estas graduações dos mundos vêm dos cantos mais negros da ideologia neoliberal e estão prenhes de racismo e preconceito contra tudo aquilo que não for ocidental ou Europeu. Para mim, enquanto houver desemprego em massa, gente a morrer de fome e silenciamento político, estamos todos muito bem mas é no submundo.